Não posso deixar de citar Gwen Raverat ao continuar sobre o tema dos espartilhos:
As senhoras nunca pareciam estar à vontade... Pois seus vestidos eram sempre feitos apertados demais, e os corpetes enrugavam horizontalmente por causa da tensão, e seus espartilhos apareciam como uma borda afiada no meio das costas delas. E apesar das barbatanas, eles poderiam formar saliência abaixo da cintura, na frente; pois, pobres coitadinhas, elas eram nada mais que humanas, apesar de tudo, e elas precisavam expandir para algum lugar.
Agora, Moriel vai compartilhar a sua experiência de tight-lacing.
Antes de tudo, a recomendação é usar espartilho sob medida. Ele é muito confortável, e quando você o coloca, se sente como se estivesse numa poltrona: relaxa as costas, não precisa contrair a barriga, nem nada, tudo fica retinho e no lugar por conta própria. Não incomoda para se movimentar, não sai do lugar, não deixa os seios "saltar" do espartilho. Para usar um espartilho diariamente, a mulher tem que ser muito sortuda para achar um pronto que se ajuste bem no seu corpo (principalmente se você for magra e não tiver uma boa quantidade de silicone nos seios).
Se você tiver qualquer problema respiratório, ou estudar/trabalhar num local que tenha muitas escadas, ou tenha que realizar atividades físicas intensas, pense duas vezes. Ou mais. O espartilho realmente faz diferença nessas horas.
Tive alguns problemas digestivos, mas foi mais por falta de auto-controle meu. Enquanto estava de espartilho, a quantidade de comida que entrava era bastante limitada. Bom pra emagrecer, né? Depois de alguns dias passando fome, comecei comer de pouquinho em pouquinho, mas o tempo todo. Além disso, tirava o espartilho à noite, deitava na cama, ficava lá uns 30 minutos e partia galopando em direção à geladeira. De alguma forma, este regime alimentar acabou não me fazendo bem.
Banheiro. Aperta um pouco a bexiga, e talvez você tenha que visitar o quarto de reflexões um pouco mais frequentemente. Ou beber menos, o que é bom, afinal, você não pode ingerir muitas coisas de uma vez e nem suar.
É bom usar alguma coisa por baixo do espartilho. Suor mais espartilho justo não é uma combinação boa para a pele, a menos que queira ter calos em lugares inusitados.
Sobre deslocamento dos órgãos, afinamento definitivo da cintura, deformações e todos os horrores, nada posso dizer. Acho que precisaria usar um espartilho por bem mais tempo do que eu usei.
Historiadoras Valerie Steele e Lynn Kutsh fizeram uma pesquisa sobre as consequências negativas do uso do espartilho, estudando exemplos de espartilhos antigos e mulheres da atualidade que usam espartilho regularmente. Em particular, tentaram descobrir o quão seriamente o espartilho afeta o volume dos pulmãos. Experiências similares foram feitas em 1998, quando voluntários usaram espartilhos do século 19 que diminuíam a sua cintura em 7,5 cm. Foi observado que o volume pulmonar diminuiu em média em 9%, chegando em alguns casos a 29%. De acordo com este estudo, espartilhos vitorianos realmente dificultavam a respiração e poderiam leva a desmaios, em particular durante atividades físicas intensas, por exemplo num baile.
Contrariamente a uma crença bastante popular, espartilhos não causam desvios de coluna, muito pelo contrário, e, em alguns casos, podem aliviar a dor nas costas. Ainda assim, uso prolongado do espartilho resulta em enfraquecimento dos músculos dorsais e abdominais. Além disso, espartilhos podem provocar deformação de costelas, caso sejam usados desde a infância. Mas no século 19, seu uso normalmente iniciava-se após 10-12 anos. Apesar do uso de espartilho poder causar grande desconforto, isso não levava a deformações permanentes: mesmo apertando as costelas, depois da remoção do espartilho, elas voltavam ao lugar. Se bem que no século 18 algumas mulheres dormiam de espartilho, e a prática persistiu no século 19.
Sobre o desconforto, novamente deixamos falar Gwen Raverat:
Nos sabíamos que era quase impossível - estavamos flaqueados por todos os lados e em desvantagem numérica - mas nos rebelamos-nos contra espartilhos. Margaret diz que a primeira vez que ela foi colocada dentro de um - quando ela tinha por volta de treze - ela correu dando voltas pelo quarto gritando de raiva. Eu não fiz isso. Eu simplesmente sai e o tirei; aguentei de mau humor a bronca que se seguiu, quando a minha condição de casca mole foi descoberta; o espartilho foi recolocado à força; e, o mais rapidamente possivel, sai e o tirei novamente. Uma das minhas governantas costumava chorar pela minha iniquidade, a este respeito. Eu tinha má figura, e para mim eles eram verdadeiros instrumentos de tortura; eles preveniam-me de respirar, e cavavam buracos profundos nas minhas partes mais macias de cada lado. Tenho certeza de que qualquer tormento pudesse ser pior pra mim.
Fígado cortado em dois é mais uma historinha de horror famosa. Realmente, por causa de um espartilho bem apertado, o fígado desce e alonga-se. Se apertar muito forte, é possível realmente causar danos. Ainda assim, de acordo com Valerie Steele, a maioria de notificações sobre deformações do fígado no século 19 está ligado não ao uso de espartilhos, mas a doenças como hepatite e cirrose. Boatos de que tight-lacing pode causar úlcera não foram confirmados durante o estudo. Contudo, descobriu-se que o espartilho pode causar prisão do ventre ou pressionar a beixiga, causando problemas urinários.
As fãs de espartilhos muitas vezes tinham problemas uterinos, mas também sob certas condições. Inúmeras mulheres, no século 19, sofriam de prolapso uterino, muitas vezes causado por numerosas gestações. Por causa da pressão sobre a parte inferior da barriga, os espartilhos agravavam esta condição. Principal tratamento contra prolapso uterino eram os pessários, uma espécie de rolhas de borracha colocadas na vagina para manter o útero no lugar. É interessante o fato de que as propagandas da época muitas vezes mostravam os pessários acoplados aos espartilhos. Mulheres que usavam espartilhos durante a gravidez ou depois do parto corriam sérios riscos. Por exemplo, vejamos o que escreve Guy de Maupassant:
Eu já havia esquecido essa história, mas há alguns dias, em uma das praias da moda, vi uma graciosa, encantadora e sedutora senhora, que usufruía de amor e respeito dos homens que a cercavam.
Eu andava pela praia de braço com um amigo, médico neste resort. Em breve, vi a babá e três crianças que brincavam na areia. Um par de pequenas muletas, largadas do lado, causaram-me um sentimento lacinante de compaixão. E então eu notei que estas três pequenas criaturas são monstruosas, corcundas, tortas, horrendas.
O médico disse-me:
- Estes são os filhos da encantadora senhora que você acabou de encontrar.
Profunda compaixão por ela e por seus filhos apossou-se do meu coração. Exclamei:
- Pobre mãe! E ela ainda pode rir!
Meu amigo continuou:
- Não tenha pena dela, meu querido. É preciso ter pena dos seus pobres pequenos. Eis as consequências das cinturas apertadas, que continuam finas até o último dia. Estas aberrações são produto do espartilho. Ela sabe que arrisca a vida assim. Mas ela não se importa, basta que ela seja bela, basta que a amem!
Existiam, é claro, espartilhos especiais para este período, que deveriam alargar-se a medida que o feto crescia, mas eles pouco se distinguiam dos seus irmãos mais tradicionais. O uso de espartilhos durante a gravidez levava a abortos ou problemas no parto. Não é de se surpreender que espartilhos muito apertados eram usados para induzir aborto.
Todas essas consequências do uso do espartilho podem levar-nos a concluir que o espartilho é um imenso mal, e todos aqueles que o usam estão condenados a uma morte dolorosa. Na verdade, é preciso separar as moscas da sopa. O uso do espartilho por si só não mata ninguém, desde que a pessoa modere e não se aperte até os olhos pularem das órbitas. Afinal, para algumas mulheres, 55 cm de cintura é um sonho inalcansável, enquanto para outras são só alguns centímetros a menos em relação ao natural. Afinal, o quanto as mulheres vitorianas diminuíam as suas sinturas?
Na Inglaterra, no século 19, corriam boatos sobre mulheres que não conseguem viver sem espartilho, usam esta peça de roupa 24 horas por dia, e apertam a cintura até 30 cm. Estas histórias normalmente começavam com palavras "Não, não sou assim, mas uma vez ouvi sobre a fulana, e ela..." Além disso, dizia-se que existiam colégios especiais, cujo objetivo principal é o afinamento das cinturas das alunas. Ou mesmo alunos. Os funcionários destas instituições obrigam os adolescentes a dormir em espartilhos apertados, diminuindo gradativamente as suas cinturas até os almejados 30 - 35 cm.
A principal fonte de informação sobre esses locais é a Englishwoman's Domestic Magazine, que recebeu, entre 1867 e 1874, mais de 150 cartas contando sobre as regras das tight-lacing schools e elogiando espartilhos. Assim, uma tal de Norah, em 1867, contou sobre a sua permanência em "uma escola em Londres para senhoritas" onde "a cintura das alunas era afinada em 3 cm todo mês". Quando ela saiu desta mesma escola, tinha, segundo ela mesma, 33 cm de cintura. Um traço distintivo das cartas cujos autores descrevem vividamente as alegrias do tight-lacing era o vocabulário. Palavras como "disciplina", "coerção", "sofrimento", "tortura" e "submissão" cobriam as páginas. Enquanto isso, as propagandas desenhavam uma imagem mais positiva: "prazer", "graça", "esplendor", "conforto"...
Outras revistas também recebiam correspondências similares. Assim, em 1863, um tal de Fanny escreveu para a revista The Wueen sobre como, aos 16 anos, foi enviado a um pensionato, onde os meninos colocavam espartilhos, cujos laços eram amarrados por duas criadas robustas, toda manhã. Outro jovem comunicou que, ao chegar no pensionato, foi imediatamente colocado dentro de um rígido espartilho, cujos laços depois foram presos por um cadeado, cuja chave foi, por sua vez, recolhida pela diretora, "bela viúva de 24 anos". Na sua carta para Society (1899), uma certa "Cintura de Vespa" contou de como revoltou-se contra o espartilho na infância. Mas se a governanta de Gwen somente chorava, a governanta francesa da "Cintura de Vespa" era uma pessoa bem mais decidida: "Depois, seguiu-se a punição, que me fez obedecer e fez-me bem. Me penduraram no teto pelos pulsos, e os pés, em botas de salto alto, foram amarrados em argolas presas no chão. Nesta posição, espancaram-me cruelmente, o que me causou forte dor, mas não deixou marcas, pois eu estava espartilhada. Antes de me soltar, a governanta apertou a minha cintura até 38 cm".
Sem dúvida, os ingleses do século 19 não tinham muita cerimônia com seus filhos, mas essas historinhas fazem pensar é em fantasias eróticas. Espancamentos, dominação feminina, sapatos de salto alto, espartilhos, amarras - enfim, tudo que um sado-masoquista iniciante poderia vir a precisar. Apesar de muitos historiadores utilizarem este tipo de material para ilustrar os horrores do espartilho, a mesma Valerie Steele está certa de que em sua maioria, autores dessas cartas tinham, simplesmente, um fetishe com espartilhos. É possível que tenham realmente vivido tudo o que descreviam, incluindo a transformação em ampulheta, mas devemos analisar criticamente o seu testemunho. Sua experiência difere significativamente da experiência diária da dona de casa vitoriana.
As ilustrações em revistas de moda e caricaturas também não dão uma resposta confiável para o grau de aperto que as senhoras vitorianas passavam. Nem mesmo as fotografias daquela época merecem confiança, já que poderiam ser retocadas para adequar a cintura feminina ao ideal inatingível. Trabalho com espartilhos que sobreviveram até os nossos dias pode esclarecer um pouco essa questão, apesar de não dar, também, uma resposta definitiva. Por exemplo, ao estudar 197 da coleção de Symington do museu de Leicester, descobriu-se que somente um deles afinava a cintura até 46 cm. Mais 11 - até 48 cm. A maioria dos exemplares afinavam a cintura até 50 - 66 cm.
Mas a circunferência da cintura não é um valor absoluto. Por exemplo, um exemplar de Nova Yorque afinava a cintura até 45 cm, com 81 cm de peito e 63 cm de quadril. Obviamente, este espartilho pertencia a uma pessoa bem magrinha. A grande maioria dos espartilhos produzidos entre 1870 e 1880 tinham os seguintes tamanhos: 76-50-76, 83-53-81, 81-56-83, 76-58-78. De acordo com a propaganda da época, tamanhos padrões eram de 45 e 76 cm de cintura.
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at quinta-feira, maio 05, 2011
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