Parte 1Vieram todos... Pais dele, meus pais... Compraram xales negros em Moscou... Uma comissão especial nos recebeu. E falava a mesma coisa a todos, que não podemos lhes entregar os corpos de seus maridos, seus filhos, eles são muito radioativos e serão sepultados no cemitério de Moscou de forma adequada. Em caixões de zinco soldados, sob placas de cimento. E vocês devem assinar este documento... É necessária a sua autorização... Se alguém indignava-se, queria levar o caixão para a terra natal, convenciam, argumentavam que eles são meio que heróis e não pertencem mais a família. São agora homens de estado... Pertencem ao estado.Entramos no ônibus... Parentes e uns militares. Coronel com rádio... Dizem pelo rádio: “Espere nossas ordens! Espere!” Rodamos por Moscou por duas ou três horas, pelo anel viário. Voltamos a Moscou... Pelo rádio: “Não permitimos a entrada no cemitério. O cemitério está cercado de repórteres estrangeiros. Esperem mais”. Os pais estão calados... O xale da mãe é negro... Eu sinto que estou desmaiando. Estou histérica: “Porque precisamos esconder meu marido? Quem é ele? Assassino? Criminoso? Bandido? Quem estamos enterrando?” Mamãe: “Calma, calma, filhinha”. Passa a mão na minha cabeça, segura pela mão. O coronel transmite: “Permitam seguir para o cemitério. A esposa está histérica”. No cemitério, fomos cercados de soldados. Seguimos sob vigilância. E o caixão foi carregado sob vigilância. Não deixaram ninguém despedir-se... Só os parentes... Enterraram em um instante. “Rápido! Rápido!” - ordenava o oficial. Não deixaram nem abraçar o caixão.E de volta aos ônibus...Em um instante, compraram e trouxeram passagens de volta... Para o dia seguinte... O tempo todo, um homem em traje civil, mas com jeito de militar, estava conosco, não deixou nem mesmo sair do hotel e comprar comida para a viagem. Para que não falássemos com ninguém, especialmente eu. Como se eu pudesse falar então, eu já não conseguia nem chorar. A administradora, quando nos saíamos, contou todas as toalhas, todos os lençóis... E ali mesmo os guardava num saco plástico. Creio que os queimaram... Nos mesmos pagamos pelo hotel... Por quatorze dias...Hospital de doença radiológica aguda – quatorze dias... Em quatorze dias, uma pessoa morre...Em casa, adormeci. Cheguei em casa e desabei sobre a cama. Dormi por três dias... Não conseguiam me acordar... Veio a ambulância. “Não, - disse o médico, - ela não morreu. Ela vai acordar. É só um pesadelo”.Eu tinha vinte e três anos...Eu lembro do sonho... A minha avó falecida aparece para mim, na roupa com que a havíamos enterrado. E arruma uma árvore de natal. “Vovó, porque a árvore de natal? Não é verão agora?” - “É necessário. Seu Vássenka vai me visitar em breve”. E ele cresceu no meio da floresta. Eu lembro... Segundo sonho... Vássia vem todo de branco e chama a Natacha. Nossa menina, que ainda não nasceu. Ela já é grande, e eu me surpreendo: quando é que ela cresceu tanto? Ele a joga para o alto, e eles riem... E eu olho para eles e penso que a felicidade é tão simples. Tão simples! E depois eu sonhei... Estamos andando na água com ele. Andamos por muito tempo... Pediu, provavelmente, para que eu não chorasse. Deu um sinal de lá. Do alto.Dois meses depois, fui a Moscou. Da estação, para o cemitério. Até ele! E lá no cemitério, as contrações começaram. Mal comecei a falar com ele... Chamaram a ambulância. Eu passei o endereço. O parto foi lá mesmo... Com a mesma Angelina Vassílievna Guskova... Ela ainda então havia me avisado: “Vai dar à luz aqui”. E para onde mais eu iria? Foi duas semanas antes do prazo...Mostraram-me... Menina... “Natáchenka, - chamei eu. - Papai te chamou de Natáchenka”. Criança de aparência saudável. Pezinhos, bracinhos... E ela tinha cirrose... No fígado, vinte e oito roentgen... Problemas cardíacos inatos... Quatro horas depois, disseram que a menina morreu. E novamente, não vamos entregá-la para você! Como assim não vão?! Sou eu que não vou entregá-la para vocês! Vocês querem levá-la para a ciência, e eu odeio a sua ciência! Odeio! Ela me tomou primeiro ele, e agora ainda espera... Não entregarei! Vou enterrá-la eu mesma. Do lado dele...Não são as palavras certas que estou dizendo... Não são... Não posso gritar depois do derrame. E não posso chorar. Mas eu quero... Quero que saibam... Não confessei a ninguém ainda... Quando eu não lhes entreguei a minha pequena menina. Nossa menina... Então eles me trouxeram uma caixinha de madeira: “Ela está dentro”. Eu olhei: vestiram-na. Estava com as roupinhas. E então eu comecei a chorar: “Coloquem do lado dele. Digam que é a nossa Natáchenka”.Ali, no túmulo, não está escrito: Natacha Ignatenko... Lá só tem o nome dele... E ela ainda não tinha nome, não tinha nada... Só a alma... Foi a alma que enterrei ali...Venho sempre com dois buquês: um para ele, o segundo eu coloco no cantinho para ela. Me arrasto de joelhos na frente do túmulo... Sempre de joelhos... Eu a matei... Eu... Ela... Salvou... Minha menina me salvou, tomou para si toda a radiação, como se fosse um receptor. Tão pequena. Pequenininha. Ela salvou-me... Mas eu amava ambos... Será... Será que é possível matar com amor? Tamanho amor!! Porque são tão próximos? Amor e morte. Estão sempre juntos. Quem poderia me explicar? Me arrasto de joelhos na frente do túmulo...
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at terça-feira, abril 26, 2011
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