Aborto na Era Vitoriana  

Posted by Moriel in ,

Desde a Idade Média, havia uma grande diversidade de métodos de aborto na Europa, incluindo exercícios excessivos, golpes violentos na barriga, cintos extremamente apertados, além de várias beberragens de eficacia variada. Assim, De viribus herbarum, do século 11, contem, entre outras coisas, uma lista de ervas que causam aborto, por exemplo a sálvia. Ainda no final do século 19 (King´s American Dispensatory, 1898), recomendava-se uma mistura de fermento e poejo (uma espécie de hortelã).

Só para citar alguns exemplos, claro, mas é fácil perceber que as mulheres do passado estavam bastante anciosas para interromper uma gravidez indesejada. Dada a mortalidade materna e a miséria de muitas famílias, isso é bastante compreensível.

Isto é, dada a mortalidade materna e a ignorância. Afinal, mesmo no início do século 20, aproximadamente um em seis abortos resultava em morte da mulher (se considerarmos os aborteiros de fundo de quintal e as suas vítimas, esta proporção certamente piora).


Por ser uma prática ilegal, é difícil estimar números exatos relativos ao aborto na Era Vitoriana. Mas uma coisa é certa: era muito difundido, provavelmente o método contraceptivo mais popular entre as mulheres mais simples. Pesquisas feitas no início do século passado apontam que pelo menos 25% das mulheres haviam tentado abortar em algum momento das suas vidas. Mas os casos se tornavam conhecidos principalmente quando as mulheres morriam ou adoeciam gravemente em consequência do aborto, já que ninguém tinha pressa de confessar ter feito algo tão horrível quanto o infanticídio.

Não chamei o aborto de método contraceptivo por engano. Na época, estes conceitos estavam separados de forma bem menos nítida do que hoje em dia. Por exemplo, um folheto de 1868 recomenda, justamente com o método da tabelinha (convém mencionar aqui que, naquela época, achava-se que o período seguro são os dias do meio do ciclo – como se sabe hoje, justamente o período em que a mulher tem mais chances de engravidar, e bote mais aborto nisso) e coito interrompido, métodos como exercícios violentos e espartilhos apertados. Contraceptivos e abortivos poderiam ser adquiridos nos mesmos locais e eram, muitas vezes, a mesma coisa: quinina, por exemplo, poderia ser usada como espermicida ou para induzir aborto.

De modo geral, as mulheres preferiam métodos químicos a “intervenção instrumental”. Uso de agulhas de tricô e outras bagaças exigia assistência de aborteiros, sendo assim mais caro e menos confidencial, o os resultados costumavam ser mais traumáticos e dolorosos. Assim, uma mulher que havia tomado várias infusões de ervas e outras beberragens sem grande sucesso fez uso de um bastão: abortou algumas semanas mais tarde, dando luz a um feto morto de cinco meses (ah sim, hoje em dia, mesmo onde o aborto é legal, ninguém vai te fazer um aborto a essa altura do campeonato).

As substâncias químicas e ervas eram baratas e fáceis de se obter, podendo ser compradas sem prescrição médica. Normalmente, se tomadas em quantidade suficiente, provocavam vômitos, contrações musculares e convulsões, sendo o aborto um efeito colateral, nem sempre garantido. O conhecimento destas substâncias fazia parte da tradição local, passado de geração para geração, e de uma mulher para outra. Não significa que não surgiam novidades. Assim, as operárias que trabalhavam com chumbo frequentemente abortavam espontaneamente, o que não passou despercebido para a mulherada. E as pílulas de chumbo tornaram-se um sucesso de vendas, um método mais eficiente que os demais, acreditava-se.

Quando um médico era chamado para ver uma mulher que havia abortado, invariavelmente examinava as gengivas em busca de sintomas de envenenamento por chumbo.
British Medical Journal, 10 de Março de 1906

Outra forma de se achar um remédio “apropriado” era consultar os jornais. Estavam cheios de anúncios de soluções milagrosas para problemas femininos.

Pílulas de Ellis são um remédio reconhecido para anemia e todos os problemas do sistema feminino. Extra fortes. Remédio seguro e rápido que nunca falha.
Halifac Evening Courier

Não dá para falar nada sobre a eficiência dessas pílulas todas, mas fazia-se muito dinheiro vendendo-as, e era perigoso comercializar algo muito forte, já que morte ou séria doença da mulher poderiam trazer problemas ao vendedor.

Afinal, ninguém além das mulheres era a favor do aborto. Os médicos tratavam a prática como “hedionda excrescência da civilização”, e os religiosos diziam que o aborto era “uma tentativa pecaminosa de destruir a vida dada por Deus, da qual a consciência de toda mulher deve se afastar horrorizada”. Além disso, aborto era visto como uma forma de as mulheres se rebelarem contra seu papel tradicional de mães de família, uma ameaça a estrutura familiar.

É uma desgraça que muitas mulheres prefiram os males e os perigos do plumbismo ao cumprimento das suas funções naturais como mulheres... Será que as meninas de hoje são educadas apropriadamente para serem capazes de cumprir as funções da maternidade?
British Medical Journal

Dizia-se que o aborto era causado por declínio dos valores morais tradicionais e era, tal como o controle de natalidade, resultado de egoismo, luxúria, frivolidade... Mesmo aqueles que admitiam que muitas mulheres recorriam ao aborto por motivos econômicos, não ofereciam solução além de pia esperança de que o estado talvez possa providenciar mais ajuda para as famílias grandes.

Os médicos surpreendiam-se bastante pela recusa das mulheres de aceitar que o aborto era ruim, especialmente porque as mulheres em questão eram, muitas vezes, bastante respeitáveis.

Uma mulher casada, de excelente educação, e em todos os outros aspectos uma pessoa muito digna de estima que, quando alertada sobre os riscos de aborto natural como consequência do estilo de vida que seguia, ignorou o perigo, e até mesmo expressou esperança de que este resultado realmente ocorra.

É muitas vezes difícil, e em muitos casos impossível fazer com que mulheres vejam a diferença moral entre livrar-se do produto da concepção e usar métodos para prevenir gravidez.

Elas não conseguem entender porque a consciência do médico é diferente da delas. Elas dizem: “ainda não pode estar vivo, só se passaram tantas semanas”.

As próprias mulheres eram tolerantes nesse assunto, considerando o aborto uma parte inevitável do dia a dia das classes mais humildes, somente lamentando quando este falhava ou resultava em doenças e morte. Contavam francamente como faziam para evitar gravidez e como tentavam de tudo para levar a gravidez indesejada a um fim prematuro. “Eu não vou ter mais nenhum, sei o jeito”, diziam uma para outra. Uma operária explicou:

As vezes, podemos engolir toda a farmácia e não faz bem algum, a criança vem do mesmo jeito, mas é fraquinha, meio esfomeada. Eu prefiro engolir a farmácia com o vendedor junto a ter mais um filho. E tem muitas cirurgias ilegais por aí. Tinha uma mulher que morava na frente da nossa última casa, as mulheres vinham até ela da cidade toda.

Ela costumava ferver mais de vinte ervas, misturar essa infusão com gim e sal, e tomar um copo toda manhã, antes do café da manhã.

Claramente, a visão das mulheres era resultado de suas experiências com os problemas da maternidade, afinal estar para parir não era desculpa para deixar de ficar algumas horas curvada sobre a tina lavando roupa. E se faltasse dinheiro na casa, a mulher era a primeira a sofrer privações.

Aborto era visto como a única solução para estes problemas. Uma mulher que teve que passar fome para pagar as contas do médico depois do nascimento do seu segundo filho escreveu:

Podemos ficar pensando porque tantas mulheres tomam remédios na esperança de se livrar do bebê que esperam quando elas sabem tão pouco sobre seus próprios corpos, e precisam trabalhar tanto para sustentar os filhos que elas já tem?

This entry was posted at sexta-feira, março 04, 2011 and is filed under , . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

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